domingo, 3 de abril de 2011

O Pensar: Hannah Arendt e Paul Ricoeur

Apresso-me em esclarecer ao leitor a aparente pretensão do título. Não se trata de apresentar as investigações destes dois eminentes "mestres de pensamento" de nosso século. Isso seria, no âmbito desse trabalho uma incomensurável ousadia. No entanto, um projeto dessa natureza pode revestir-se de singular relevância dado o inegável poder de sedução, cada qual a seu modo, que as obras em seu conjunto e suas penetrantes análises e reflexões vem exercendo nas últimas décadas no âmbito da filosofia e do pensamento político. Ambos são herdeiros de uma tradição filosófica cujos mestres são alguns dos maiores filósofos de nosso século, como Husserl, Heidegger, Jaspers. Não tenciono estabelecer qualquer comparação ou paralelismo. Muito menos enfrentar o desafio de ponderar tendo como objeto de análise a obra ou alguma obra em particular de um ou de outra, influências mútuas ou alguma polêmica. Ricoeur é um leitor especial de H. Arendt, tendo publicado diversos textos preciosos sobre o pensamento político de Arendt assim como um belo prefácio à edição francesa de Human condition (La condition de l’homme moderne). Desconheço algum trabalho de Arendt sobre Ricoeur. De qualquer modo este meu trabalho é modesto. Seguir por breve momento algumas reflexões de ambos sobre o pensar.
A leitura dos grandes mestres da filosofia nos mostra que é importante, antes de tudo, estar aberto e atento à problemática significada pelo filósofo e como ele nos convida a seguir seu caminhar. Trata-se, a meu ver, de um movimento de deslocamento de si próprio para estar atentar ao outro, à sua palavra. E, então, julgar se o "desvio" pela obra, a "desapropriação de si", ao ouvir o outro, revelou algum sentido para o desafio que cada qual de nós enfrenta em seu existir. Assim, meu propósito, por ora, é entender a interpelação que essa pensadora e esse filósofo, duas admiráveis figuras de nossa época, nos endereçam como um convite a seguir as trilhas de suas meditações. Cada qual a seu modo está profundamente engolfado na problemática da condição humana, na busca de sentido como tarefa primordial do filosofar. E como notou Merleau-Ponty no seu Eloge de la philosophie, "se filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser, não se filosofa abandonando a situação humana; deve-se, ao contrário, nela entranhar-se". E ambos têm como ponto central de suas meditações a condição humana cuja decifração de sentido é a tarefa imperiosa da reflexão filosófica.
Paul Ricoeur cunhou, já há algum tempo, uma expressão tão breve quanto densa e emblemática: "Le symbole donne à penser" ([1960] - Finitude et culpabilité vol. II La symbolique du mal. pag 26. Nesse mesmo volume a conclusão recebeu como título esta mesma expressão. Esta máxima ocupou por bom tempo suas investigações filosóficas.
A frase inaugural da obra se expressa numa interrogação: "como passar da possibilidade do mal humano à sua realidade, da falibilidade à falta (faute)" (pag.11). E Ricoeur, imediatamente mostra sua intenção: "Tal passagem nós tentaremos surpreendê-la no ato," repetindo em nós mesmos a "confissão" que a consciência religiosa faz. (idem). Ricoeur inicia, então, rigorosa e magistral investigação voltando-se para o mito naquela dimensão onde revela seu alcance de compreensão, que é a "função simbólica", vale dizer, seu poder de revelar, de descobrir o vínculo do homem a seu sagrado."(pag.13) Tendo passado pelo processo que Ricoeur denomina "desmitologização", processo pelo qual se exclui a intenção etiológica, isto é, seu intento primordial de explicar a origem das coisas, e uma vez desmitologizado no contato com a história científica e elevado à dignidade de símbolo, o mito é uma dimensão do pensamento moderno (cfr. idem pag.13) Desde o início desse seu itinerário, Ricoeur deixa claro seu vínculo com duas culturas que constituem, segundo ele, o primeiro estrato de nossa memória filosófica: a cultura grega e a judaica. "Mais precisamente, afirma ele, o encontro da fonte judaica com a origem grega é a intercessão fundamental e fundadora de nossa cultura; a fonte judaica é o primeiro" outro "da filosofia, seu outro o mais" próximo; o fato abstratamente contingente deste encontro é o destino mesmo de nossa existência ocidental. (idem pag. 27). Ricoeur situa-se claramente na tradição da filosofia ocidental.
Hannah Arendt, em sua última obra A vida do espírito -(vol. I "O Pensar" - [1975 edição original]) apresenta o terceiro capítulo com uma indagação também emblemática: O que nos faz pensar?
Logo na Introdução Arendt afirma: "Minha preocupação com as atividades espirituais tem origem em duas fontes bastante distintas. O impulso imediato derivou do fato de eu ter assistido ao julgamento de Eichmann em Jerusalém. Em meu relato (Arendt indica a obra publicada sob o título" Eichmann em Jerusalém- 1963), mencionei a "banalidade do mal". Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento -- literário, teológico, filosófico -- sobre o fenômeno do mal."(idem pag.5). Mais adiante Arendt afirma: "o que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou motivos, em quaisquer níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente -- ao menos aquele que estava em julgamento -- era bastante comum, banal, e não demoníaco e monstruoso." (idem pag. 6). Arendt refere-se à "irreflexão" como característica notada do comportamento do acusado. Foi a ausência de pensamento que provocou sua atenção; "uma experiência, afirma ela, tão comum em nossa vida cotidiana .em que dificilmente temos tempo, e muito menos desejo de parar para pensar." (idem).

1- Ricoeur: o símbolo e a reflexão
"O símbolo dá a pensar. "Ricoeur vê aí desvelar-se duas coisas: o símbolo dá. O que ele dá? o sentido nele, de certo modo, enclausurado. Isso quer dizer que eu não constituo o sentido, não dou o sentido. O símbolo carrega em seu seio o sentido que irá interpelar." A partir da doação, a posição". (pag.325) E mais, o símbolo dá a pensar, do que pensar .(pag. 324). E o filósofo pode empreender o pensar na tarefa de interpretação criadora de sentido, fiel à impulsão do símbolo que dá a pensar, e fiel ao juramento do filósofo que é de compreender. (cfr. 324) O que pode sugerir esse aforisma? Ricoeur responde: "o aforisma sugere, ao mesmo tempo, que tudo está já dito em enigma e que, contudo, é preciso sempre tudo começar e recomeçar na dimensão do pensar." (pag.325). É esta articulação do pensamento entregue a ele mesmo no reino dos símbolos e do pensamento poente e pensante que constitui o ponto crítico de todo o empreendimento. Tudo já está dito em enigma. Estamos desde sempre no reino da linguagem. É mister, portanto, uma interpretação que respeite o enigma original dos símbolos (pag.325) deixando-se instruir por eles e a partir daí promova o sentido, forme o sentido na responsabilidade plena de um pensamento autônomo. (cfr.pag.325). Para a filosofia a tarefa não é impossível uma vez que o símbolo situa-se no elemento da palavra.
Mas como entender a noção de símbolo?
O símbolo é antes de mais nada um signo. Não qualquer signo, pois nem todo signo é símbolo. É símbolo aquele signo que encerra, em sua visada, uma dupla intencionalidade: os símbolos visam um sentido primeiro, literal, e através deste um segundo sentido que só é acessível pelo primeiro. (cfr. O conflito das interpretações pag. 244). "Denomino símbolo, diz Ricoeur, toda estrutura de significação em que um sentido direto, primeiro, literal designa, por acréscimo, um outro sentido indireto, secundário, figurado que só pode ser aprendido através do primeiro." (idem pag. 15).
Diversamente daquilo que se passa numa comparação ou em uma alegoria, onde cada um dos termos é inteligível por si mesmo, o símbolo não dá o seu segundo sentido senão através da transparência do primeiro. Em O conflito das interpretações Ricoeur esclarece: "Diferentemente de uma comparação que consideramos de fora, o símbolo é o próprio movimento do sentido primário que nos faz participar do sentido latente e assim nos assimila ao simbolizado, sem que possamos dominar intelectualmente a similitude." (pag.244). É nesse sentido que o símbolo é doador. É doador porque é uma intencionalidade primária que dá o sentido segundo (idem pag. 244-245). A intenção originante é pensar, atividade do filósofo. É, no entender de Ricoeur, a atividade por excelência que anima a filosofia desde os gregos de cuja tradição de racionalidade somos herdeiros. Ricoeur distingue tal atividade, para melhor aprendê-la, da mera "intuição imaginativa". O pensamento "situa-se, de pronto, desde sua origem (arché) na linguagem que inaugura, no ocidente, o originário desvelamento de uma realidade já aí dada que precedeu qualquer elaboração racional." Pois tal é a situação, de uma parte, tudo foi dito antes da filosofia, por signo e por enigma. Tal é um dos sentidos da palavra de Heráclito: "o mestre, cujo oráculo está em Delfos, não fala, não dissimula,: ele significa." (alla semainei). De outra parte, temos a missão de falar claramente, talvez assumindo também o risco de dissimular ao interpretar o oráculo." (idem .pag.250).
No entanto, admitindo-se que a filosofia é reflexão ou que a atividade que caracteriza o filosofar é a reflexão, o que leva, indaga Ricoeur, a reflexão a apelar para o símbolo, para a linguagem simbólica? Isso leva o autor a direcionar sua investigação para o conceito de reflexão. O símbolo provoca a reflexão. E esta é uma atividade específica do homem. Mas como entender esta atividade já que foi o próprio homem, através dela, quem determinou ser uma característica sua específica? "Quando dizemos que a filosofia é reflexão, afirma Ricoeur, queremos dizer reflexão sobre si mesmo." (idem. pag.275). A densidade ontológica como verdade inicial da filosofia esse "si mesmo" recebeu da tradição inaugurada por Descartes, e que passa por Kant e Fichte." (idem). Para essa maneira de ver, a afirmação do si é apresentada como verdade que se auto-proclama. "Ela não pode ser nem verificada, nem deduzida." (idem). O ego do ego cogito afirma uma existência e um ato ou uma operação do pensamento. O ego existe na exata medida em que pensa. E a reflexão vem a ser a auto-posição deste ego cogito. Entendemos, assim, que a reflexão se identifica com a volta imediata sobre si operada pela consciência., o que levaria a uma aproximação indevida entre reflexão e intuição. A posição de Descartes nos apresenta o ego como inteiramente subjugado no seio do Cogito. Ricoeur propõe então, o resgate desse mesmo ego. "A posição do ego deve ser retomada através de seus atos, pois ela não é dada nem numa evidência psicológica, nem em uma intuição intelectual, ou numa visão mística." (idem pag. 275).
Tal é a via de acesso proposta por Ricoeur para a retomada do ego. É uma via que se efetiva por um desvio; de fato, "a primeira verdade -- existo, penso -- permanece tão abstrata e vazia quanto inacessível." (pag.275). Atingimos o ego através de uma volta, um desvio, até onde esse ego se cristalizou, se objetivou: suas obras, ações, representações e instituições. A decifragem dessa objetivação é que me dará a compreensão do si. Ricoeur entende que uma filosofia da reflexão não se identifica com uma filosofia da consciência "se por consciência entendemos a consciência imediata de si mesmo" (pag.275). Daí a necessidade de mediação, âmbito onde situam-se os símbolos. A consciência não seria, então um dado, mas uma tarefa. Um passo adiante: é justamente no intervalo entre a reflexão e a intuição que se situa a tarefa da hermenêutica, da interpretação no conhecimento de si mesmo.
Como ‘Ricoeur afirma, há uma perda do ego nos "objetos" ou objetivações. Se há perda, o processo de reflexão, de interpretação opera uma recuperação. "Devo recuperar algo que primeiro foi perdido." (idem 276). Há que se recuperar "o ato de existir, a posição do si em toda a densidade de suas obras." (idem). Se me compete recuperar o eu, de certo modo "extraviado" nas suas obras e representações, apropriar-me dele significa que a "situação inicial donde procede a reflexão é o ‘esquecimento ‘". (idem, pag. 272). Sou como que cindido, separado do centro de meu existir. Se há cisão significa que eu não possuo, no início, o que sou. "A posição do si não é um dado, é uma tarefa." (idem 277).
Para Ricoeur não se deve permanecer na dimensão reveladora do símbolo, o que levaria a entendê-lo como mero aumento da consciência de si. Na verdade, "uma filosofia instruída pelos símbolos tem por tarefa uma transformação qualitativa da consciência reflexiva". (Finitude et culpabilité pag.. 331). Entendido simplesmente em sua função reveladora o símbolo perderia a sua função ontológica. E para Ricoeur, nessa perspectiva fingiríamos crer que o "conhece-te a ti mesmo" é puramente reflexivo, quando, na verdade, é antes de mais nada um apelo endereçado, pelos deuses, a cada um no sentido de melhor situar-se no ser, ou em termos gregos a "ser sábio". (cfr. O conflito pag. 331). E Ricoeur nos relembra a passagem do diálogo platônico Cármide quando Sócrates diz a Crítias: "O que o deus (em Delfos) diz a cada um quando adentra em seu santuário, é: seja sábio! Porém na qualidade de adivinho, ele o diz sob forma enigmática: "conhece-te a ti mesmo", que é equivalente a "seja sábio" assim como diz a inscrição e que eu confirmo." (Cármide 165 a.).
A tarefa de que está incumbido o filósofo é romper o recinto encantado da consciência de si, desfazendo o privilégio da reflexão. Para Ricoeur o símbolo nos fala como uma espécie de indicador da situação do homem no ser no qual ele existe e quer. (cfr. idem pag.331."O símbolo dá a pensar que o Cogito está no interior do ser e não o inverso." (idem). Os símbolos dizem a situação do ser do homem no ser do mundo. A reflexão do filósofo terá, então, a tarefa de, a partir dos símbolos, elaborar não só estruturas de reflexão mas também estruturas de existência, na medida em que existência é o ser do homem" (ide pag,331-332).
Ricoeur denuncia a redução da reflexão à simples crítica quando na reflexão se tenta hipostasiar as operações do pensamento que fundem a objetividade das nossas representações, em outros termos, a atenção toda volta-se para a epistemologia. Com esta ressalva, ele marca sua preferência pela posição de Jean Nabert que na linha de Fichte, concebe a reflexão como verdadeira reapropriação de nosso esforço para existir. (idem pag 276). "A epistemologia, afirma ele, é apenas uma parte dessa tarefa mais vasta: temos que recuperar o ato de existir, a posição do si em toda a densidade de suas obras." (idem pag,276). Recuperação como apropriação já referida antes". Torno próprio "meu próprio", aquilo que deixou de ser meu. "Percebe-se bem indicada a preferência da escolha de Ricoeur pela dimensão ética da reflexão, quando refere-se a Spinoza, que entende ética no seu sentido amplo, vale dizer: "quando chama ética o processo completo da filosofia." (idem. pag.277). Que não se confunda, então, ética com moral. Seguindo Spinoza podemos defender que a reflexão é ética antes de se apresentar como crítica da moralidade. "Sua meta é, afirma Ricoeur, de apreender o ego no seu esforço para existir, em seu desejo de ser." (idem pag, 277). Aí, então Ricoeur prossegue sua argumentação articulando de modo admirável a idéia platônica do Eros como desejo, amor e a idéia spinozista de conatus (esforço, empenho). O conatus como esforço é desejo na medida em que nunca se satisfaz; e o desejo como Eros é um esforço uma vez que é a afirmação de um ser e não uma carência de ser. (cfr. O Conflito, pag.277). "Esforço e desejo são as duas faces dessa posição de Si na primeira verdade: sou, existo." (idem pag.277). Ricoeur arremata sua argumentação com as palavras simples, porém densas e de singular propriedade semântica conceituando reflexão como "a apropriação de nosso esforço para existir e de nosso desejo de ser, através das obras que atestam esse esforço e esse desejo." (idem pag,.277).
O símbolo dá a pensar. A filosofia está apta a buscar uma interpretação instituidora de sentido sendo fiel tanto ao impulso do símbolo que dá a pensar quanto fiel ao compromisso ao juramento do filósofo que é de compreender (cfr. Culpabilité ... pag. 326). Pensar a partir do símbolo. Como? O que é necessário é uma interpretação que respeite o enigma original dos símbolos, que se deixa instruir e ensinar por eles mas que, a partir daí, promova o sentido, forme o sentido na plena responsabilidade de um pensamento autônomo. E aqui mostra-se, segundo Ricoeur, a aporia: o pensamento ao mesmo tempo livre e vinculado. E como é possível, indaga ele, vincular a imediatez do símbolo e a mediação do pensamento? (cfr. pag. 325).

2- Arendt e as falácias da metafísica
Nem todos os pensadores ou filósofos têm a preocupação em tematisar explicitamente a atividade de pensamento. Poucos a tomaram como objeto de análise e investigação. Hannah Arendt, em sua ultima obra A vida do espírito, consagra o primeiro volume ao Pensar. Concebida originariamente para ser publicada em três volumes Pensar, Querer e Julgar.
O ponto de partida foi um "incidente" - o fato de ter assistido, em Jerusalém, o processo de Eichemann. Em seu "Entre o passado e o futuro" Arendt assevera : "Meu pressuposto é que o pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação." (pag. 41). Na introdução do volume Pensar Arendt afirma: tendo sido aturdida por um fato, que queira eu ou não, "me pôs na posse de um conceito" (a banalidade do mal), ... Ela denominou "irreflexão", ou "ausência de pensamento" que despertou seu interesse durante as seções do julgamento de Eichman. O acusado não era demoníaco ou monstruoso segundo o entendimento de Arendt., o que chocou muita gente. Não. ele era simplesmente banal, comum, "A conspícua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos..." (idem pag. 5). Foi a ausência de pensamento que despertou seu interesse. E isso levou-a à seguinte questão: "Será que a maldade -- como quer que se defina este estar" determinado a ser vilão" --- não é uma condição necessária para fazer o mal? Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar?" (idem pag.6). Para Arendt a resposta é não. Pelo menos se concebe o pensar como a capacidade de produzir de conceber como resultado o bem. No fundo a questão que se impunha era: "seria possível que a atividade de pensamento como tal --- o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independentemente de resultados e conteúdo específico --- estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ’condicione‘ contra ele?" (idem pag. 6-7).
Podemos observar que o problema do mal despertou o interesse de reflexão de ambos os autores. Ambos, relacionam de algum modo, o pensamento e o mal. Ricoeur retoma os mitos e inicia sua marcha investigativa através do estudo da "confissão" do mal e dos mitos da culpa e da mancha, numa dimensão do sagrado no humano. Seu horizonte de significação é o entrecruzamento da tradição grega e a fonte judaica. Para Ricoeur o pensamento é instado a decifrar o sentido encoberto nos símbolos -- é realçada sua função interpretativa, hermenêutica na busca de sentido.
A questão do pensar já estivera presente, antes, nas reflexões de H. Arendt em sua monumental "A condição humana", título sugerido pelo editor .Ela própria havia cunhado o título "Vita activa". Sua atenção voltava-se para o conceito de ação "a mais antiga preocupação da teoria política." Arendt se autodenominava como alguém interessada em teoria e ciência política. Não aceitava quando alguém a considerava um filósofo. "Não pretendo nem ambiciono ser ‘um filósofo, ou estar incluída entre aqueles que Kant não sem ironia chamou de Denker von Gewerbe -(pensadores profissionais)." (idem pag.6). O que a incomodou, pode parecer, foi a posição privilegiada em que a Filosofia, em sua origem, sempre colocou a contemplação, ou a vita contemplativa ou bios theoretikós. O termo por ela adotado -- vita activa -- foi cunhado por "homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida." (idem pag. 7). Segundo Arendt a atividade de pensamento para Platão serve apenas para abrir os olhos do espírito e o nous de Aristóteles é um órgão para ver e contemplar a verdade. (cfr.idem pag.7). O pensamento visa portanto a contemplação e esta não é atividade mas passividade", o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso. (idem). Desde então as duas "vidas" a contemplativa e a ativa, se cindiram. E a história da filosofia mostra na seqüência, é o que despertou o interesse de Arendt, que "a noção de completa quietude da Vita contemplativa era tão avassaladora que, em comparação com ela, todas as diferenças entre as diversas atividades da Vita activa desapareciam." (icem pag. 8).
Arendt estava convencida da possibilidade de se investigar as questões da ação e do pensar de uma perspectiva diferente daquele herdada da filosofia. Ele questionou fortemente a posição dos filósofos, de Platão e Aristóteles passando por Descartes e Kant. É emblemática sua lembrança, no final de A condição humana, da sentença atribuída, por Cícero, a Catão: nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando está a sós consigo mesmo." (idem pag. 8 - a obra citada de Cícero é De Republica. I, 17). Na Introdução a "A vida do espírito" confessa ter-se afastado do "âmbito seguro da ciência e da teoria políticas para "aventurar-se nesses temas espantosos".
Mesmo que Arendt tenha insistido nessa sua posição de assim denominado distanciamento do âmbito da filosofia, dificilmente pode-se aceitar não entendê-la como singular herdeira da tradição filosófica desde o mundo grego (incontestável modelo para Arendt) até o pensamento filosófico alemão. A marcante e expressão de René Char tão salientado por Arendt em seus estudos, quase que à maneira de lema: Notre héritage n’est précédé d’aucun testament (nossa herança não vem precedida de testamento algum) esclarece de modo inequívoco qual será a posição de Arendt na filosofia contemporânea. "Juntei-me, diz ela ao final do volume, claramente às fileiras daqueles que, já há algum tempo, vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia, com todas suas categorias, do modo como as conhecemos, desde o seu começo na Grécia, até hoje." (idem pag.159). E acrescenta que tal desmontagem "só é possível se aceitarmos que o fio da tradição está rompido e que não podemos reatá-lo." (idem). No entanto, apressa-se em admitir que as "falácias metafísicas" são o único registro sobre o que representou o pensamento como atividade para aqueles - os filósofos - que o escolheram como modo de vida. Tanto a metafísica como a filosofia, após esse "desmonte" (note-se que Heidegger é o conhecido artífice de tal operação), não tenham mais relevância, ou nem sejam convincentes para os leitores modernos. Nem por isso, no entanto, devem ser rotuladas como puro absurdo e, em conseqüência, descartadas. "Ao contrário, diz Arendt, as falácias metafísicas contêm as únicas pistas que temos para descobrir o que significa o pensamento para aqueles que nele se engajam -- algo extremamente importante neste momento e sobre o que, estranhamente, existem poucos depoimentos diretos." (idem pag. 12).
No meu entender, é singular, em nossa época, a posição de Arendt em relação à herança comum a todos na qual vem sendo tecida nossa cultura ocidental. Arendt orgulha-se, fica patente, de poder considerar-se herdeira de um tesouro. Podemos "olhar o passado, diz ela, com novos olhos, sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições e, assim, dispor de uma enorme riqueza de experiências brutas, sem estarmos limitados por quaisquer prescrições sobre a maneira de lidar com estes tesouros. Em outros termos, não somos amordaçados e enclausurados em uma espécie de "manual de instruções de como usar .." .Nossa criatividade não terá amarras a ceifar-lhe as forças. É justamente essa a vantagem de nossa atual situação subsequente à morte da metafísica: podermos olhar o passado com olhos livres das prescrições que ofuscam nossa visão. E Arendt volta a insistir na sua posição de distanciamento dos filósofos, pois, esses pensadores profissionais retiram-se do mundo das aparências que desde Platão é chamada a região de poucos.
Quando Arendt refere-se às falácias metafísicas (os obstáculos ou argumentos ardilosos sob os quais a metafísica simula atividade de pensamento) não quer dizer que denuncia o paradoxo da pertença ao mundo e da retirada do mundo. Ao contrário, essa posição consiste em reafirmar reconhecendo esse paradoxo como tal e em fazê-lo valer. "Há falácia quando o paradoxo, longe de ser reconhecido como tal, é encoberto. E esse paradoxo é aquele da condição humana que, por um lado, pertence ao mundo das aparências e que, por outro lado, dele se retira para pensar, querer, julgar." (Taminiaux, 1989.-94). Arendt afirma como essencial para o empreendimento todo a distinção estabelecida por Kant entre duas faculdades espirituais: Vernunft e Verstand – razão e intelecto. Essa distinção, para Arendt, entre as duas faculdades coincide com a distinção entre duas atividades espirituais diferentes: pensar e conhecer. Ambas têm interesses ou finalidades distintas: o significado no primeiro caso, e a cognição no segundo. Segundo Arendt Kant não deu atenção à especificidade da atividade de pensar, pois exigiu dela um resultado aplicando-lhe o "tipo de critério" para a certeza e a evidência, que são os resultados e os critérios da cognição. O grande obstáculo que a razão (Vernunft) põe em seu próprio caminho, afirma Arendt, origina-se no intelecto (Verstand) e nos critérios, de resto inteiramente justificados, que ele estabeleceu para os seus propósitos, ou seja, para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição. (Arendt, A vida do espírito. – pag. 12).
Hannah Arendt resume sua crítica afirmando que "a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa". (idem). A falácia subjacente a isso é a interpretação do significado no modelo da verdade. Pensar, insiste Arendt não é conhecer. O conhecer tem por objetivo a verdade, enquanto que o pensar visa o sentido.
O desmantelamento da metafísica, da filosofia e suas categorias como as conhecemos desde o seu início na Grécia tal como o entende Arendt, a leva a operar na "A vida do espírito" um deslocamento da questão do Ser para a questão da aparência ao trazer a atividade de pensar à sua condição fenomenal. Assim deve-se pensar o pensamento a partir do mundo e não pensar o ser a partir do pensamento. A filosofia poderá, então, voltar-se novamente para a política, o que é fundamental para Arendt. O pensar só terá sentido se relacionado à aparência de um mundo fenomenal. Porém, as atividades mentais são invisíveis em relação ao mundo. Arendt fala de um processo de "desensorialização" pelo qual passa o pensamento, apresentando, desse modo, o traço singular de realizar-se sem atos visíveis e manifestos . O pensamento situa-se, por assim dizer, "fora do mundo" ao contrário da ação e da palavra, as quais exigem um espaço (ver versão francesa pag. 88).
Pensar aparece como um retirar-se, evadir-se da companhia de outros, impedindo, assim, a ação, atividade que é exercida entre os homens. Pensar seria uma morte viva. "Assim, diz Arendt, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimo as expressões" viver" e "estar entre os homens" (inter homines esse) ou "morrer" e "deixar de estar entre os homens" (inter homines esse desinere) "(A condição humana" pag. 15). Situação inquietante, pois, o pensamento estaria, por isso condenado alienar-se do mundo. Como seria possível uma "vida do espírito" se pensar é entendido como morte ao mundo? Por outro lado, a vida sem discurso e sem ação – único modo de vida em que há sincera renúncia de toda vaidade e aparência na acepção bíblica da palavra -- está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens."(Arendt 1981. P. 189).

3- Sócrates como modelo
As diversas respostas, "historicamente representativas" apresentadas por filósofos profissionais, Arendt as qualifica de dúbias, pois, quando levantada por esses filósofos, a questão - O que nos faz pensar? - "não surge das suas próprias experiências enquanto estão pensando" (Arendt 1992 p. 125). E’ formulada de fora. E, irônica, Arendt afirma: é essa impotência do ego pensante para explicar – se que faz dos filósofos, dos pensadores profissionais, uma tribo tão difícil de lidar." (idem pag. 126).
O filósofo retira-se do mundo das aparências para pensar; não tem qualquer impulso em aparecer nesse mundo. Visto a partir da perspectiva desse mundo, o eu pensante do filósofo vive escondido. E Arendt insiste que a pergunta tal como formulada: "o que nos faz pensar?" tem a intenção de provocá-lo a manifestar-se, trazê-lo para o mundo das aparências (no sentido de manifesto, do aparecer abertamente). Arendt busca, então, um modelo de "pensador não profissional que unifique em sua pessoa duas paixões aparentemente contraditórias, a de pensar e a de agir." (idem. Pag.126). Alguém capaz de estar à vontade nas duas esferas e de passar de uma para outra e não alguém que saiba unicamente estabelecer padrões teóricos para ação. Arendt enumera os diversos requisitos resumindo-os na seguinte expressão: "um pensador que tenha permanecido sempre um homem entre homens, que nunca tenha evitado a praça." (idem 126). E, sobretudo, "caso esse homem possa representar para nós a real atividade de pensar, então não terá deixado atrás de si nenhum corpo doutrinário." (idem pag 126).
Tal modelo só pode ser Sócrates. Note-se bem que Arendt deixa claro que pretende explorar uma outra maneira de se pensar além daquela apresentada pelo filósofo, um pensador profissional, aquele da vida escondida "lathe biosas" (idem pag. 126) identificado com o metafísico. Ela procura a resposta do "não-profissional" ou aquele que unifica duas paixões contraditórias: a de pensar e a de agir, como já foi dito acima. A vita activa, vida de ação, é para Arendt, a vida da "condição humana": ação – atividade que se passa entre os homens. Sócrates foi notado não por ter dado a vida por "um credo ou doutrina – ele não tinha nenhum dos dois -- mas simplesmente pelo direito de examinar as opiniões alheias, pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo." (idem pag, 127). Sócrates praticou um tipo de reflexão ponderativa que não visava produzir algum resultado. Em outros termos, o que chamou a atenção no "pensar" de Sócrates foi sua convicção, entre outras, de que a virtude pudesse ser ensinada, ou, que "falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem poderia tornar os homens mais piedosos justos e corajosos." (idem pag. 129).
Para ilustrar as convicções de Sócrates, Arendt explora as comparações que o próprio Sócrates estabeleceu a seu respeito. Ele se comparava a um moscardo, a uma arraia-elétrica e a uma parteira. Como moscardo ele sabe ferroar os cidadãos e desperta-los para o pensamento atividade sem a qual a vida sequer vale a pena ser vivida. Como uma parteira, Sócrates sabe como dar à luz os pensamentos dos outros. A parteria é estéril, mas sabe quando lida com uma gravidez ilusória ou real. E nos diálogos, os interlocutores de Sócrates raramente produziram um pensamento que não fosse um falso feto. Ele, então, os "aliviava" de seus pre-conceitos e opiniões não examinados e que impediam o pensamento.
E, finalmente, tal como uma arraia-elétrica que com um choque paralisa quem a toca, Sócrates provocava também uma paralisação naqueles com os quais entrava em contato. Para Arendt, no caso de Sócrates, a paralisia induzida pelo pensamento é dupla: ela é inerente ao parar para pensar, à interrupção de todas as atividades .... e, pode ter também um efeito atordoante, depois que a deixamos, nos sentindo inseguros sobre o que parecia acima de qualquer dúvida enquanto estávamos impensadamente engajados em fazer alguma coisa." (idem pag. 132).
O que se aprende com o exemplo socrático? Que essa atividade do pensar é uma atividade que visa a busca de sentido da vida; pensamento inquieto que recusa identificar-se com qualquer tipo de conhecimento a busca de certezas e verdades. "Os atenienses disseram a Sócrates que o pensamento era subversivo, que o vento do pensamento era um furacão a varrer do mapa os sinais estabelecidos pelos quais os homens se orientavam, trazendo desordem às cidades e confundindo os cidadãos." (idem pag.134). Mas para ele, Sócrates, o pensar apenas desperta (como a ferroada do moscardo) e isso representa um bem para a cidade. Sócrates não tinha a pretensão de apresentar-se como um grande benfeitor da polis. Insistia, sim, que a vida sem pensamento seria uma vida sem sentido "embora o pensamento jamais torne alguém sábio ou dê respostas às perguntas que ele mesmo levanta." (idem pag.134).

Conclusão
O pensamento é a atividade particular do homem ao empreender a busca de sentido (hermenêutica) de seus atos de existência que são objetivados no mundo social e cultural. No pensar articulam-se em convergência e em complexidade a compreensão ética e a interpretação (dimensão simbólica) das obras, das instituições e representações do sujeito humano.
Para Ricoeur o símbolo nos dá a pensar; a exegese dos símbolos do mal propicia a entrada dos mitos no conhecimento que o homem tem de si mesmo levando-os, desse modo, ao âmbito do discurso filosófico. O símbolo, nas palavras de Ricoeur, fala como um índice da situação do homem. Toma corpo, assim, a tarefa do filósofo orientado pelo símbolo que é justamente a de provocar a ruptura na consciência de si e subverter o privilégio da reflexão. A partir dos símbolos, para Ricoeur, poderá ser elaborado um quadro de conceitos existenciais ou estruturas de reflexão e estruturas de existência. (cfr. Finitude .. pag.332).
Para Ricoeur a filosofia tem a vocação de esclarecer através de noções a existência mesma. A filosofia é a tentativa de expressar, de dizer o sentido não dito, porém, dizível, do existir, da vida. Desse modo ela é primordialmente hermenêutica, interpretação dos sentidos que realizam na história a sedimentação de uma vida.
A lembrança de Sócrates por Arendt é particularmente interessante pois que sua posição "é fundada numa experiência própria do pensamento que não é aquela do eu pensante oposto à cidade, nem a do cidadão, mas a que revela a surpreendente convergência entre a experiência do pensamento e a exigência da polis, porquanto ela revela um modo de pensar que nos ensina como a pluralidade mundana se inscreve no coração mesmo da atividade de pensar." (Ontologie et politique pag. 73).
Ricoeur ocupou-se com esta questão no início de sua jornada de meditação e investigações filosóficas. Arendt ocupou-se com o pensar pela última vez em sua A vida do espírito. Podemos alcançar um ponto interessante ao qual ambos convergem que é a busca pelo sentido. Na esteira desses pensadores podemos encontrar tarefas do filosofar. Filosofar é engajar-se numa reflexão a propósito da condição humana, sem um mapa nem um destino preciso, talvez até sem saída "prevista". Filosofar é decidir lançar um olhar "outro" sobre as coisas e sobre a vida. Ambos relembram Sócrates ao notar que "não vale a pena viver uma vida sem reflexão". Filosofar é, então, mirar de frente sua própria finitude, apreender o sentido ambíguo do existir e penetrar no mistério do mundo. Se "pensar acompanha o viver ..."(Arendt) filosofar é, então, antes de mais nada, aceitar que a vida é um paradoxo, um enigma, um símbolo a ser interpretado sem cessar. Filosofar seria, ainda, interpretar o mundo sem fim; busca incansável de um sentido que desde que é anunciado aparece já na nudez de sua insignificância. Afinal Sócrates nos deixou a chave para a sabedoria que é o reconhecimento da própria ignorância: eu sei que nada sei de essencial.

Bibliografia
Arendt,H.- A vida do espírito. 1992. Ed.Relume Dumará. Rio de Janeiro.
Arendt,H.- A dignidade da política. 1993. Ed.Relume Dumará.Rio de Janeiro
Arendt,H.- A condição humana. 1981. Ed. Forense. Rio de Janeiro.
Abensour,M e allii-(ed.) Actes du Colloque Hannah Arendt.: Ontologie et politique. 1989.Editions Tierce. Paris.
Ricoeur,P.- O conflito das interpretações. 1978. Ed.Imago. Rio de Janeiro.
Ricoeur, P. – Philosophie de la volonté. Livre II La symbolique du mal. 1960. Ed. Aubier. Paris.

 Newton Aquiles von Zuben
Doutor em Filosofia - Université Catholique de Louvain
Faculdade de Filosofia PUC- Campinas

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